terça-feira, 31 de julho de 2018

MEMÓRIA SUBMERSA

Roseana Murray está em Saquarema.
1 h
Ontem na TV 5 vi um grupo de africanos desembarcando em Cádiz, Espanha, corriam desesperados pela areia da praia fugindo da polícia, chegaram vivos, pelo menos, mas para onde vão? O que será de suas vidas?
Ninguém sai da sua terra se puder ficar. Salvo um ou outro aventureiro. Porque o mundo não ajuda a África, depois de ter sugado seus tesouros, matado, escravizado suas populações, roubado suas terras?
Depois comecei a ver o filme Shoah, ontem passava a primeira parte.
Mas não aguentei mais do que uma hora.
Eu via aquelas cidadezinhas polonesas, quase aldeias, e dali, de uma delas, saiu meu pai, por milagre antes da guerra.
Eu já havia visto essa primeira parte no cinema, quando muito jovem, mas não me lembrava de quase nada. Apenas uma cena guardei intacta.
O filme é uma obra-prima. Não mostra o que houve. Trabalha apenas com a memória.
Há essa memória
submersa,
feito algo
que repousasse
dentro de um lago
às margens de uma floresta.
Pequenas cidades
adormecidas,
suas casas, armarinhos,
oficinas, lojas claras
e escuras, sinagogas,
de algum canto
saiu meu pai,
o futuro como três grãos
de ervilha no bolso
e um grito na garganta.
Faz muitos muitos
anos, mas eu também
fugi dali junto com
meu pai menino
e aquele lago, aquela
luz ao entardecer,
os pinheiros,
suas sombras,
os mortos,
tudo me pertence.

Poema Inédito

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Bia Hetzel, minha editora e amiga amada, publicou uma carta de uma leitora onde contava que por ter lido na infância os seus livros sobre baleias, hoje era estudante de biologia.
O impacto que um livro pode ter sobre o destino e as escolhas de uma pessoa é impressionante.
O impacto que um livro pode ter na vida de uma criança é monumental.
Por isso, uma escola sem uma Biblioteca ou Sala de Leitura é inconcebível. Deveria ser crime e os governos deveriam ser punidos por omissão.
A Bia me contou uma história linda.
Uma vez ela foi a um abrigo e ao falar do livro Jardins que era editado pela Manati, um menino disse que era muito meu amigo.
Ela perguntou: - Mas de onde você conhece a Roseana?
Ele disse que me encontrou num lugar cheio de trens e que eu havia lhe dado um livro de presente.
Realmente eu participei de um projeto belíssimo no Museu do Trem. E cada criança ganhava um livro. Eu e o Demóstenes fizemos uma atividade com meu livro Maria Fumaça Cheia de Graça. As crianças, diante de um pano imenso no chão, bordaram juntas.
Depois a Bia soube que o menino era sobrevivente de uma chacina. E que, ao entrar no abrigo, carregava meu livro como um tesouro.
O quanto meu trem deve ter ajudado esse menino! Para que lugares onde pudesse respirar ele o conduziu?
Assisto maravilhada a campanha que Volnei Canonica e Roger Mello estão fazendo pelo livro infantil e juvenil.
Tudo começa com a literatura.
Sempre contei que, filha de imigrantes judeus poloneses, para não sufocar numa casa triste, eu me mudei, assim que aprendi a ler, para o Sitio do Pica-Pau Amarelo com as minhas melhores bagagens.
O Sitio salvou a minha vida e foi algo tão forte que transferi esse abrigo para meu sítio em Visconde de Mauá. Já adulta, em momentos de muita dureza e dor, eu ia para lá em pensamento.
Os livros sempre nos salvam. E uma criança sem livros é feito uma semente sem terra e água.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

PARTIDA

Estou de partida para a montanha.
Mergulharei na mata com todos os meus sentidos, pois realmente estou precisando parar o mundo e virar árvore.
Anseio pela noite escura e sua respiração.
Anseio pelas manhãs geladas.
Evoco o livro da Bella Chagall, Luzes Acesas, ela conta suas incursões solitárias pelo bosque quando criança e seu maravilhamento, quando a leio, é o meu.
Mas quando criança, eu morava no Grajaú, no Rio de Janeiro e não tive nenhum contato com fazendas ou matas ou sítios. Não tive essa sorte. Entretanto, recuperei o tempo perdido.
Várias vezes morei na montanha: Com meus filhos pequenos e depois quando me separei do primeiro casamento..
Não é fácil viver em isolamento. Mas nada pode nos ensinar tanto. Sei que muito do que sou foi forjado ali. Hoje tenho luz e todas as facilidades, mas no passado, sem luz e sem quase nada que tornasse a vida cômoda, viver ali era o exercício mais precioso de virar poeta.
Muitas vezes pensava: Se um antepassado chegasse, por alguma brecha do tempo, de algum tempo paralelo onde ainda vivesse, se sentiria em casa, com poucas diferenças.  Então me sentia próxima a pessoas de um álbum de família inexistente, pessoas que são feito as sombras da tarde quando a luz se esvai, não podemos nomeá-las, mas quem sabe o que deixaram em nós, em nossos genes.
Acabo de reler De Repente Nas Profundezas do Bosque, de Amós Oz e estou pronta para entrar no bosque e tentar ouvir, com ouvido afiado, a aranha em sua teia.

terça-feira, 3 de julho de 2018

ENTRE UMA VIAGEM E OUTRA

Muita gente me diz: é maravilhoso estar contigo em teu cotidiano.
Acompanhar a tua vida, as tuas viagens. Muita gente me disse isso em Londrina e em cada lugar por onde passo.
A minha vida é simples demais. Mas acontece que moro num lugar esplêndido, de uma beleza fulminante e minha casa é aberta para receber meus leitores para um café. Sempre aberta.
E em Visconde de Mauá, onde também moro um pouquinho, a mata é soberana e exercito a essencialidade no mais alto grau. Nem armário de roupas eu tenho, pois não cabe no quarto e é incrível como podemos viver com tão poucas coisas.
Entre uma viagem e outra há o mar, o bosque, os jardins. E a poesia. E o silêncio, para mim, imprescindível.