quarta-feira, 28 de maio de 2014

MERCADO DE PEIXES

Indo por Rialto se chega ao Mercado de Peixes. Tentamos ir por dentro, pelas ruelas e às vezes entramos num beco sem saída. Os "Sottoportegos", passagens cobertas, escuras, me levam para a Idade Média, devia ser apavorante passar por estes lugares.
Restaurantes lindos, lojas maravilhosas, em Veneza a beleza é rainha.  O Mercado de Peixes deve ser muito antigo, pois há uma inscrição na pedra, na entrada, dizendo o nome dos peixes que podiam ser vendidos e o tamanho.
Os peixes são arrumados como joias delicadas, todos os mariscos, peixes grandes também, uma espécie de lagosta negra, lulas pequenas, polvos , o mar inteiro aí representado . Uma placa dizia: "atum belíssimo". Um trio tocava, violão, violino e acordeão. Enquanto tocavam um peixeiro dava um gole num cálice de vinho tinto que estava apoiado num banquinho atrás do balcão. Jogamos uma moeda no chapéu dos músicos num intervalo e perguntei de onde eram. Napolitanos.
Do lado de fora do mercado , o outro mercado, de frutas e verduras enchem os olhos de cores.
Fomos para o Campo S. Polo caminhando labirinticamente. É uma praça maravilhosa, imensa, com uma Igreja que começou a ser construída no século IX. Nos sentamos num banco. O banco ao lado do nosso estava vazio até que chegou um velhinho que quase não conseguia andar. Sua neta era seu anjo da guarda. Como cuidava do avô, com que desvelo. Outros velhos iam chegando e paravam um pouco para conversar com eles. A certa altura o avô deve ter se queixado de frio ou do vento, pois o banco estava na sombra. A neta ajudou o avô a se levantar e puxou o banco para o sol. Os bancos não estão fixados no chão.
Quando fomos embora eles ainda continuaram sentados conversando.
Trocamos o almoço pelo jantar na Taberna S.Maurizio.  O restaurante estava lotado e nos sentamos ao lado (quer dizer, colados) de um casal que falava uma língua estranha, que não identifiquei. Dividimos de entrada uma salada grega , o queijo feta é uma maravilha, e pedimos um risoto de frutos do mar, que é para dois. O casal quase bateu palmas e perguntei se queriam provar. Começamos a conversar e eram holandeses. Lindos e apaixonados. Depois de meia jarra de vinho da casa eu já falava inglês fluentemente!
Aqui o serviço de meteorologia também erra, como no Brasil.. Anunciavam chuva para às 8h e o tempo está lindo.    

terça-feira, 27 de maio de 2014

MENDIGAS

Ao lado das Igrejas onde há mais fluxo de gente, as mendigas sentam-se no chão, com suas saias imensas, com o corpo torcido, com o torso quase encostado no chão, um copinho ao lado para as moedas e uma voz enjoada pedindo esmola.
Ontem depois de muitas escadas e pontes e vistas estonteantes pela Veneza de dentro, nos sentamos na praça S.Margarita , linda de morrer, com seus restaurantes e barraquinhas de frutas. Ao meu lado havia um senhor lendo um jornal e fumando cachimbo, mas no banco ainda cabia uma pessoa. Então veio a mendiga, andando firmemente, sem problema nenhum, sentou-se para fumar um cigarro e tirou um celular moderníssimo, do bolso? da saia? não vi, e ficou olhando as mensagens. Depois saiu dali toda faceira e voltou provavelmente para o seu "trabalho". Não sei sua nacionalidade.
Na praça que fica perto da Universidade Fosca, há um desfile de italianas, italianos, jovens e velhos, tão bem vestidos todos que poderiam estar numa passarela. Ontem de manhã o tempo estava nublado e algumas mulheres levavam guarda-chuvas, mas não qualquer um. Se a bolsa era verde o guarda-chuva era verde. Se o sapato era azul , o guarda-chuva era azul. Um senhor vinha andando com um paletó marrom com um friso verde na manga (no punho) e um lenço verde no bolso, como se usava antigamente. Os italianos e italianas, de qualquer idade, saem vestidos como para um encontro amoroso com a rua.
Finalmente consegui conversar com um africano sem ter que comprar uma bolsa. Perguntei a ele de onde era, de Dakar, respondeu , então eu disse, você se sente triste em Veneza, longe do Senegal? E ele me respondeu: -Muito triste, é muito duro viver aqui. Perguntei se todos os africanos tinham um único distribuidor de bolsas e ele não quis responder. Contei a ele que conheço Dakar e ele me disse: _Então Madame, leve uma bolsa! Mas as bolsas, para o meu gosto são horrorosas! Saí andando com seu olhar triste dentro de mim.
Voltamos ao nosso restaurante preferido, a taberna bem simples S.Maurizio, onde os garçons Lorenzo , albanês e Paolo, italiano, ficaram nossos amigos e fazem a maior festa quando chegamos. A comida é simples e simplesmente maravilhosa e o vinho da casa também, se eu ficasse aqui mais 15 dias poderia entrar num quadro do Botero e ninguém ia reparar a diferença.
Eles trabalham duro. Paolo prometeu ao Juan uma ricota fresca feita por seu cunhado. Nós os convidamos para passar férias em Saquarema. A seleção musical é ótima, jazz principalmente, mas Lorenzo disse que detesta.
E lá vamos nós outra vez para a rua.
    

segunda-feira, 26 de maio de 2014

VELHOS E VELHAS

Gosto de ver as velhas e os velhos nas praças. Elas, arrumadíssimas, com o bom gosto italiano e eles também. Gosto de vê-los subindo e descendo as intermináveis escadas, às vezes com a ajuda de uma bengala, mas sem desistir. Seu exemplo me deu tanta força que caminho horas sem me deixar vencer pela coluna que dói. Velhas bem velhas trabalham nas lojas na Veneza de dentro. Sentam nos restaurantes sozinhas e sozinhos. Às vezes andam em grupos de amigos e amigas conversando.
Falar a palavra velho ficou proibido.Mas eu acho a palavra linda. Uma pessoa velha é a que já viveu muito e acumulou experiência, sabedoria e se for leitora, está cheia de livros por dentro. Os velhos e velhas de Veneza não moram numa cidade fácil. Há que domar distâncias e escadarias. Imagino que os prédios antigos não tenham elevadores. Os supermercados não entregam as compras em casa. Aqui os velhos precisam ser auto suficientes para sobreviver.
Tenho 63 anos e se tiver sorte quero ficar bem velha como uma bela árvore velha. Quero que meus filhos, netos e amigos encontrem sombra e histórias ao meu lado. Não tento disfarçar a minha idade, é um privilégio viver. Sou testemunha de um tempo que já não existe e isso não se compra. Tenho lucidez para tentar entender o tempo complicadíssimo em que vivo e que ainda é o meu tempo.
Ontem caminhávamos por dentro de Rialto e paramos olhando para um lado e outro para decidir se íamos para a esquerda ou direita. Uma velha parou e nos perguntou se estávamos perdidos. Respondemos que adorávamos estar perdidos. Ela riu e falou: isso é maravilhoso, é assim que se deve viajar.
Ainda não sabemos por onde vamos nos perder hoje. Abro as janelas e vejo que choveu um pouco à noite e refrescou. Um absurdo o calor que fez até agora e em maio!
Ontem, dentro de Rialto encontramos um restaurante maravilhoso, o Vecio Fritolin da Irina. A Irina estava lá e nos atendeu de um jeito bem carinhoso e enquanto comíamos chegaram uns japoneses de uma revista para fazer uma reportagem. O Chef, que havia trabalhado no Japão, apareceu e explicava os pratos que eram fotografados. Tudo quase em silêncio , com muita delicadeza. A comida era tão boa que antes de ir embora dei um beijo em Irina.

domingo, 25 de maio de 2014

GIUDECCA E A SENHORA FRANCA

Não se sabe muito bem a origem do nome Giudecca, que está logo ali, do outro lado e tem a vista mais linda do mundo , porque se vê o Palácio Ducal. Foi um bairro de má fama, um bairro operário, de mulheres de "má vida" e havia uma prisão. Hoje é um bairro lindo, pacato, com um ou dois turistas. Sair de São Marcos num sábado com milhares de pessoas despejadas pelos cruzeiros era como abrir a porta de um paraíso. Na Giudecca havia o maior moinho da Europa antes da Segunda Guerra. Depois foi abandonado e agora é um hotel.
Andamos por dentro e era tão bonito, simples, os jardins meio abandonados mas cheios de rosas, porque é primavera.
Almoçamos no calçadão num restaurante de comida verdadeiramente veneziana e recomendo com fervor: Trattoria Al Cacciatori, Giudecca 320. Na mesa ao nosso lado uma senhora comia sozinha. Começou perguntando se nosso prato era bom. E então começou a falar e não parou mais. Contou toda a história do bairro, pois é uma apaixonada pela Giudecca e leva quem quiser para conhecer tudo e de graça. Nos contou que é divorciada, sua filha mora em Londres e para não se sentir sozinha faz em casa uma pensão com café da manhã. Está super feliz com este arranjo, conhece gente do mundo inteiro. A única condição que impõe aos seus hóspedes é que amem os gatos, pois tem dois. E nos diz: O mundo se divide em quem ama e não ama os gatos. A Senhora Franca nos conta que é jornalista e escreve sobre os barcos. Não entendi esta parte muito bem. Mas perguntamos porque Veneza recebe estes cruzeiros monumentais e despeja milhares de turistas numa cidade que é toda ela uma relíquia delicada ? Ela nos diz que é uma máfia composta de políticos e donos de restaurantes e quem se opõe corre o risco de ser assassinado. Ela nos diz que sua família é oriunda da Sicília e que a máfia de antigamente é brinquedo de criança. Agora todo o governo , todo o poder é uma máfia.
Quem quiser ficar hospedado na Giudecca onde praticamente não há turistas, seu endereço para contato é B&B Giudecca Bella e seu telefone é 0039 3331147390. Mas o vaporetto para S.Marcos é caro: 14 euros por pessoa ida e volta. De qualquer maneira não vale a pena vir a Veneza no fim de semana.
Hoje, domingo , é a votação para o Parlamento Europeu e a abstinência será muito grande. A União Europeia corre muito risco no futuro. O ódio aos imigrantes cresce. O ódio aos judeus cresce. A União Europeia é sobretudo uma garantia para a paz. Há um movimento para acabar com as fronteiras livres. É assustador. Por isso no Brasil temos que lutar por uma educação de muita qualidade, mas sem jogar ninguém contra ninguém. A civilização se constrói com paz.
   

sábado, 24 de maio de 2014

OS AFRICANOS E AS BOLSAS

Os africanos são lindíssimos. Altos, quase azuis de tão negros, sempre com suas bolsas falsas, nos lugares estratégicos. De repente pegam as bolsas e saem rápido para outro lugar. Às vezes estão em frente mesmo da loja Louis Vuitton, penso que pode ser que estas marcas caríssimas de bolsas também fabriquem as bolsas falsas e assim vendem as verdadeiras e as outras. Se bem que as verdadeiras não custam menos de 3.000 euros. Não sei o preço das falsas, não posso perguntar, pois então os vendedores não me deixariam ir embora sem uma delas. Na verdade tenho tanta pena dos africanos longe de suas casas , de sua família, que compraria todas para ver um sorriso em seus rostos. Onde moram?De que país vieram?
Ontem, além de ver São Marcos às 6h da manhã sem ninguém, fomos à noite e não há nada mais belo, mais alucinante, mais feérico. Os grupos já partiram. Na praça estão apenas os que dormem em Veneza, numa praça tão imensa não são tantos. O Palazzo Ducale iluminado, a Igreja iluminada, as orquestras tocando, andando alguns passos, as gôndolas dormindo coberta,s com os fantasmas de Veneza bem acomodados dentro delas, dá vontade de gritar e gritar e gritar de maravilhamento. Ou dançar até gastar os pés. Finalmente fazia um pouco de frio, pois pela primeira vez à tarde choveu um pouco.Desde que chegamos faz um calor imenso.
Hoje vamos para a Giudecca. 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

LABIRINTO

Veneza é um labirinto, um novelo de ruas, canais e ruelas que vão se abrindo, se estreitando, ruazinhas sem saídas, becos, um novelo feito de tempo e história, seus fios sobem pelas paredes, pelas escadas e vão nos "desguiando", pois basta um nada para que já não se saiba mais onde se está, já não se encontre o que se queria encontrar. Esta é a maior beleza daqui, sempre há algo novo para ver, mesmo que se viva aqui para sempre.
Ontem saímos para Fondamenta Nuove outra vez e sem querer nos perdemos totalmente e fomos passando por lugares lindíssimos que não conhecíamos. Paramos no Campoi S.Apostoli , perto da Ferrovia para descansar um pouco.Antes passamos por uma padaria tão fantástica que não resistimos e compramos um pão preto. A padaria se chama Colussi e funciona na mesma família desde 1840.
Na praça convivem todos os tipos de comércio, a Osteria Dal Riccio Peoco ao lado de uma loja de artigos fúnebres, morte e vida se entrelaçando. Não é preciso dizer que em cada praça há uma Igreja lindíssima.
Na Calle Dei Proverbi demos de cara com um Hotel saído das 1001 noites: Hotel Giorgione, entramos para ver e seu fausto é inimaginável. Data do final do século XVIII e sempre com a mesma família.
Já em Fondamenta Nuove, no Campiello Stella, damos com uma banca de peixe. Os peixes são arrumados como jóias, intercalados com frutas e flores e cestos cheios de concha e estralas do mar, como decoração.
Conseguimos encontrar o Restaurante Bocca D'Oro e era meio dia em ponto. Uma profusão de sinos. O restaurante é muito simples Na pracinha Campiello Widmann , antigamente se chamava Biri. Mas para nós tem um encanto especial. Por aí quase não passam turistas. Faço uma brincadeira comigo mesmo, que meu neto faz, se chama vejo-vejo. O que vejo? Casas desgastadas e um prédio lindíssimo, todo restaurado, de cinco andares. Vejo uma turma de estudantes pequenos com suas professoras, vejo um pedreiro com telhas nos ombros, uma criança de patinete e sua mãe vai puxando o patinete com uma cordinha, que ideia ótima!
Sentados, esperávamos o dono do restaurante,ele chega, abre os braços e nos acolhe com alegria depois de ter se esquecido de nossa reserva no sábado passado. Ele nos aconselha "un vino strepitoso!" O adjetivo estrepitoso me deixou encantada.
Aí sentados, tentamos adivinhar o enredo das coisas. Chega um casal com três garrafas de vinho , uma aberta, o casal senta com as garrafas sobre a mesa e pensamos: Que estranho, vão tomar todo este vinho?
Serão produtores de vinho? Ela fala com o proprietário e tento entender. Sim, é isso, ela fala da sua paixão pela terra e tenta vender o vinho, o proprietário prova, chama a sua mulher que prova e o Juan fala com eles dizendo que temos um filho Chef e então colocam novas taças na nossa mesa e provamos também , sua vinícola é da Toscana e logo ela se interessa em vender o vinho para o meu filho e diz que vende para o Brasil , visita o Brasil uma vez por ano. Anoto para ela o site do restaurante do meu filho. Ficamos todos amigos.
Voltando passamos pelo Campo N.S.Dei Miracoli e agradeço o milagre de estar conseguindo andar tanto .É tudo muito autêntico, a léguas de distância dos pontos turísticos. É uma Veneza real, com seus velhinhos, estudantes, gente que vive aqui e não é fácil viver aqui, imagino Veneza no inverno...
Hoje fomos bem cedinho a S.Marcos. Seis horas da manhã e ninguém, ninguém, apenas os varredores com suas vassouras grandes de bruxa, as gôndolas ainda cobertas e uma modelo no meio da praça , toda de negro, com uma fotógrafa. Elas falavam russo.   

quinta-feira, 22 de maio de 2014

FÁBRICA DE GÔNDOLAS

Ontem saímos ao Deus Dará por dentro da Accademia. Ao passar pela Porte S.Trovaso, como por um passe de mágica ou milagre, os turistas desaparecem.  Juan entra numa linda loja de doces e compra uma preciosa caixinha de balas. Espero na porta e ele sai maravilhado, com cara de menino travesso.
De repente, ao começarmos a atravessar uma ponte, a surpresa: do outro lado funciona a fábrica de gôndola. Em 1980 Juan fez uma grande reportagem aí para seu jornal e me conta: para construir uma gôndola são necessárias 8 espécies de madeira, as madeiras com mais ou menos 14 metros e a menor 8 cm. Dependendo do lugar da gôndola variam a espessura e a dureza da madeira. Elas são trabalhadas com fogo. Nesta fábrica também se reformam as gôndolas velhas.No momento em que chegamos puxavam uma gôndola da água para dentro do galpão, seis homens faziam força.
Chegamos no calçadão Zattere Al ponte Longo, maravilhoso, de onde se avista na outra margem a Giudecca. Seus palácios são soberbos e flores e flores e flores: é primavera e uma primavera calorenta e seca. Trouxemos casacos em vão. Dormimos com a janela aberta! Ontem deve ter feito uns 30 graus.
Chegamos ao Campazzo S.Sebastian. Ninguém. Sem lojas. Numa casa há uma placa. Leio:
LIVIO PODACATHARO , nobre de Chipre, Bispo humanista , viveu e morreu nesta casa em 1556.
No Campo de L'Anzolo Rafael há um restaurante mínimo. Paramos para um vinho. A mulher que nos atende é muito antipática, mas eu pergunto se anzolo é anjo e ela me diz que sim, em veneziano. Realmente, no Campo ao lado , em seu poço, há um alto relevo com um anjo belíssimo. Numa ruela, em um muro, uma pichação: "turistas fora do nosso quarteirão".
Incrível, numa casa ouvem rádio e está tocando uma música do Jorge Ben. Este bairro se chama Dorsoduro e há algumas placas que dizem " Dentro Venezia". Mas não adianta, os turistas ficam mesmo em S.Marcos, Rialto, Accademia. Para nossa sorte.
Chegamos ao Campo S.Margaritta, lindíssimo, com suas barracas de legumes, verduras e frutas e a Igreja com uma exposição dos artefatos do Leonardo Da Vinci que vimos da última vez que viemos aqui. Seus restaurantes são lindos. Na volta vi um cabeleireiro e num impulso decidi cortar bem curto o cabelo. Perguntei o preço e era viável, não era mais caro que no Brasil. Está tão curto que nem me reconheço, mas é ótimo, não dá trabalho nenhum.
Almoçamos na nossa taberna preferida, a S.Maurizio, os restaurantes fecham às 15hs e só reabrem às 18hs. Os garçons já são nossos amigos e ontem conversamos muito com um deles. É albanês. Mora em Mestre. Trabalha 12 horas. Saiu muito jovem de uma Albânia destruída pelo comunismo. Quando volta, de férias, para estar com a família, já se sente estrangeiro. E na Itália também se sente estrangeiro. Ele diz, mas se aprende a viver assim, sempre deslocado. Como uma pasta maravilhosa (já marquei uma nutricionista para a minha volta, pois pareço a personagem do livro Comer, Rezar e Amar, só fica faltando o quesito rezar, mas conjugo o verbo comer com uma verdadeira sem cerimônia). Juan pede um tiramisú para minha desgraça, pois não resisto de jeito nenhum e se ele não for rápido, como o tiramisú inteiro.
Hoje voltaremos a Fondamenta Nove, mas passearemos do outro lado. Vamos em busca do nosso almoço frustrado do outro dia. Amanhã conto tudo.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

BURANO

Imaginem um quadro primitivo, com suas casinhas coloridas, pequenas, cheias de flores, um canal no meio, pontes pequeninas, de sonho, assim é Burano. Pegamos um traghetto em S.Marcos, e do alto da escadaria, antes da Ponte dos Suspiros , se via uma avalanche de gente chegando, nunca vi nada igual, centenas ou milhares de pessoas, uma massa que se movia sob a batuta de um maestro imaginário, sempre em frente, sempre em frente. Não sei como Veneza pode suportar tanta gente, é um crime. São grupos imensos que vão passando, passando, sem ver nada.
Em Fondamenta Nove trocamos de barco e descemos em Murano. Como da última vez passamos um dia inteiro em Murano, desta vez demos apenas uma volta. Entramos em algumas lojas que são como galerias de arte, com coleções de um único artista, bem autorais. Numa delas, tudo era em preto e branco, espetacular. Havia um elefante tão maravilhoso, de vidro fosco, nem parecia vidro, parecia isso sim, vivo. Eu queria o elefante com todo o meu coração, mas talvez custasse menos um elefante de verdade: 8.000 euros! Quem pode comprar? Juan me diz, ora, os políticos brasileiros, os da máfia russa e etc, etc. Não seres mortais comuns, como nós e meus leitores.
Fomos então para Burano, nosso destino. Burano é uma ilha tão pequena que cabe na palma da mão. Suas casinhas nos convidam: fiquem aqui!!! Numa porta estava escrito: "Albergue.Aqui sobra amor e paciência. Os netos não pagam e são mimados de graça". Tocamos a campainha entusiasmados, pois em Burano não há hotéis e descobrimos um albergue. Uma senhora veio atender e perguntamos: _Aqui é um Albergue? E
 ela respondeu, não, não, isso é uma brincadeira! Mas soubemos que alugam casas, entramos numa lojinha que vendia casinhas de Burano de madeira e Juan queria uma para pendurar no nosso estúdio. O próprio artista atendia e ele alugava o segundo andar da casa. Desnecessário dizer que já fazíamos planos de passar uma temporada aí, nossos planos são muito econômicos , pois depois de algumas horas já mudamos de ideia.
Almoçamos num restaurante maravilhoso, Riva Rosa, o próprio dono nos atendia e conversamos muito. Ele nos diz que em Burano nada acontece , não há violência nem problemas, então eles inventam problemas, já que o homem, para ser humano, tem que estar insatisfeito. Dividimos de entrada uma pasta com lula em sua tinta e uma "fritada veneziana" que são vários frutos do mar empanados, inclusive ostra! Biscoitos típicos com café. Uma garrafa inteira de um vinho fantástico e no caminho para o barco compramos frutas frescas para a noite. Na Europa não se pode tocar nas frutas, isso é horrível, pois temos uma ligação sensual com as frutas, nós brasileiros. Precisamos tocar, apalpar, cheirar, antes de comer. Compramos pêssegos, cerejas e morangos. Foi nosso jantar no quarto do hotel, depois que chegamos, exaustos, já não dava mais vontade de sair.
Burano, a cidade das rendas, acho que já não fabrica rendas. As que vemos , já não são fabricadas pelas senhoras que vimos em suas casas trabalhando com a porta aberta , há apenas dois anos atrás. Talvez venham da China, ou são fabricadas em algum lugar por mulheres do terceiro mundo, exploradas. As lojas agora vendem de tudo e não só rendas. Até as máscaras de carnaval. Vimos muitas muitas casas à venda.
A nossa lucidez vê o sonho e o que está atrás do sonho, debaixo da cama, o que não nos impede de viver o sonho. Burano é linda de morrer e já queríamos comprar uma casa e nos mudarmos para lá! 

terça-feira, 20 de maio de 2014

ACCADEMIA

Ontem fomos para a Accademia, uma das vistas mais bonitas do Canal é de cima de sua ponte de degraus de madeira. Começamos pelo Campo S.Vio onde há uma igrejinha mínima bizantina, estava fechada, mas há um lindo Jesus em cima da porta, um Jesus bizantino. E então começam as ruas de galerias de arte, as lojas de murano. Aqui é a Fondamenta Ospedaleto.
Chegamos no Museu Guggenheim. Na primeira sala o coração já dispara: um móbile imenso e maravilhoso do Calder, Picasso, uma escultura do Giacometi. Na segunda sala Miró, Max Ernst, e vamos seguindo, Magritte , Ives Tanguy. Uma sala inteira só para Jackson Pollock. Esculturas do Calder, Georges Braque. E então Chagall, que é minha grande paixão, seu quadro La Pluie. E depois De Chirico, Kandisky, Paul Klee!
Umas trinta crianças de boné amarelo, da idade do meu neto, com as professoras e cordas dos dois lados (elas dentro) entram para ver as obras. Com quatro ou cinco anos já vão aos museus. Meu neto Luis adora ver pinturas e sobretudo esculturas. Para, examina, comenta.
Foi tão emocionante ver todas estas maravilhas ao mesmo tempo! O século XX inteiro estava ali.
Depois entramos na Igreja.N.S.de La Salute, acho que é esse o nome, e lá estavam os grandes Tiziani e etc, que são pinturas maravilhosas mas não me emocionam.
Em Rio Terá S.Vio, as janelas dos pequenos prédios explodiam de cores, gerânios, vermelhos, brancos, rosa e as roupas bem lavadinhas cantando ao vento. No Brasil escondemos os varais como se fosse feio expor nossas roupas.
Uma velha toda de negra olha imóvel pela janela, parece uma estátua.
E terminamos numa trattoria bem pequenininha, toda de madeira, com uma comida esplêndida, perto do nosso hotel e ainda por cima com um bom preço. Comemos um risoto com frutos do mar que aqui são mínimos , com um sabor tão delicado, uma perfeição . Sempre vinho da casa, são ótimos.À noite voltamos, os garçons nos reconheceram e eu já consigo pedir as coisas em italiano e também perguntar. Faço as aulas no meu curso on line todos os dias e fico prestando atenção nas conversas dos italianos e já entendo tudo ou quase! Amo esta Babel de línguas. Por que falamos línguas tão diferentes ? Fui num sebo comprar alguma coisa em italiano para ler mas não achei nada que me interessasse. Mas hoje li um pouco do jornal , o mundo continua horroroso, mas Veneza continua belíssima, tudo em seu lugar.   

segunda-feira, 19 de maio de 2014

LUVAS

O caminho para a nossa infância pode passar por um som, um cheiro, um rosto levemente familiar na multidão ou por uma loja de luvas. Explico: Quando era criança minha mãe, modista, fazia vestidos de festa, maravilhosos como os da Pele de Asno. Bordados com pedrarias, eu a acompanhava à casa da bordadeira, Dona Lili. Depois de prontos ela escolhia para cada vestido um par de luvas macias , delicadas ao toque como seda. Ontem, ao nos dirigirmos para Fondamenta Nove, tínhamos que passar por Rialto, pelo meio da multidão. Uma loja colada na outra, colada na outra... Num dos Campos, na frente de uma Igreja, um coral de homens e mulheres vestidos de negro, com um Maestro entusiasmado, cantava canções italianas. Paramos para ouvir. Do Rialto , segue-se sempre em frente. Mas antes de sairmos dali, uma loja só de luvas, inteira, com centenas delas cobrindo a vitrine, me fez parar, e trouxe aqueles dias de volta, dos vestidos de festa que minha mãe preparava para suas freguesas. Vestidos de princesa ou rainha, eu pensava.
De repente, em dois minutos, ao chegar no território de Fondamenta Nova, a multidão desapareceu num piscar de olhos e só havia silêncio, as pontes, um casal aqui e ali e chegamos no Campo Santa Maria Nova, uma praça linda cheia de bancos vermelhos e com venezianos de verdade! com suas crianças, velhinhas, cachorros. Alguns restaurantes bem típicos, pessoas conversando sem pressa, lojas sem nenhuma pretensão, lojas de fantasias para o carnaval.
Chegamos no Campiello Widmann, nossa meta era encontrar um restaurante onde comemos uma comida totalmente inesquecível, em nossa última estadia em Veneza dois anos atrás. Pois demos de cara com o restaurante Ostaria Boccadori. O dono era o mesmo, claro, aqui poucas coisas mudam e queríamos comer tarde , mas ele disse que fechava às 14h e teríamos que chegar às 13.30h. Então fomos caminhar por este bairro simples e lindo, suas pontes , uma gôndola deu um susto num barco e o gondoleiro gritou OI... que é o grito deles. Nunca andei de gôndola  e esta é a quarta vez que venho aqui, elas são insuportavelmente caras.
Encontramos um ateliê lindíssimo de pinturas em espelho. E além de vender os espelhos de todos os tamanhos , dá vontade de levar algum para casa, você pode fazer o seu desenho e imprimir ali na hora. O ateliê se chama Fallani Venezia e o artista estava presente.
Passamos por um convento de Jesuítas que virou Fundação Cultural.O que adoro: os prédios que se debruçam na água com um varal de roupas coloridas.
Voltamos ao restaurante na hora marcada. Não havia lugar, apesar da nossa reserva, ele havia se esquecido da gente! Ficamos de voltar outro dia, ele fez uma cara triste e voltamos para procurar um restaurante onde também havíamos comido antes, o Al Conte Pescaor, um restaurante antiquíssimo, perto de São Marcos. Bem simples. Não fui nada criativa e escolhi outra vez um spaghetti al pomodoro. E já que estou todo o tempo exercitando  o pecado da gula, comi uma trufa afogada no café.
Hoje vamos ao Gugenheim.

domingo, 18 de maio de 2014

OS PASSOS

Antes de sair do nosso Campo Santa Maria Del Giglio entramos em sua Igreja, lindíssima. Cada ponte é um quadro vivo e há que parar em cada uma, os prédios dançam na água e lá,onde o olhar já não pode passar, eles desaparecem numa curva. No caminho para o Campo S,Maurizio entramos numa Galeria de Arte para ver uma exposição de fotos feitas pelo bailarino Michail Barishnikov. Não se sabe se são fotos ou pinturas, todas de danças pelo mundo.Muito bonitas. Na Contin Galleria, sua dona nos conta que ele tem uma Fundação e todo o dinheiro é para ajudar jovens artistas de qualquer área, não só da dança.
Ao chegar a S.Maurizio, há uma exposição grátis, dentro de sua Igreja,.de Instrumentos musicais ao longo do tempo. Instrumentos de corda. Ao som de Vivaldi, alaúdes, violas d'amore, da gamba, violinos, cellos, alaúdes e outros instrumentos que eu não conhecia, exóticos, guardados em vitrines, exibem suas datas: 1600, o cello mais antigo e assim até chegar ao século XX.
Até chegar ao Campo S.Stefano, vamos namorando suas lojas de pão. Os pães são arrumados de tal maneira que queremos comer todos. Ao passar por uma linda trattoria uma moça que limpava seus vidros nos escuta falar e toda feliz diz que é brasileira de São Luis e vive em Veneza há doze anos. Fazemos uma reserva para a noite, a trattoria é muito charmosa e perto do nosso hotel.
Vamos andando, parando em cada ponte para suspirar, absorver a água, as casas  e há uma linda placa numa casa que diz que Francesco Querim foi sepultado no Polo, sob a neve. Não há data mas pelo brasão Juan me diz que foi na Idade Média. Uma rua se chama Piscina S.Samuele. Fico curiosa: por que piscina? Pergunto a um garçom que arruma as mesas na calçada e ele nos diz que no passado ali havia um reservatório de água.
Na calle del Postrin crianças venezianas brincam na porta de suas casas, cachorros alegres vão chegando, querem brincar também.
Em Veneza se pode ouvir os passos. No silêncio das ruas de dentro eles pontuam a manhã. Passos e sinos.
Nas ruas de dentro as pessoas falam baixo. E as roupas penduradas nas janelas das casas cor de terra nos falam das vidas que se desdobram dentro delas.
E me apaixono pelos nomes das ruas: Ramo Narisi, Calle Pesaro,Rio Terrá de La Mandola, Barbarigo, Rio Terrá Dei assassini... Pergunto a Juan porque será que se chama aterro dos assassinos esta ruela e ele me diz que talvez ali, naquele beco, ladrões antigamente assassinavam pessoas, mas agora , ainda bem, a rua é de livrarias. Uma ruela: Campiello novo o dei morti.
Depois de duas horas de caminhada paramos para um vinho e soam os sinos das 12 horas. A Igreja de San Stefano , onde estamos, é de 1643.Ali  o bar era turístico demais e não comemos nada, mas ao voltar a caminhar, comemos um pedaço de pizza de uma pizzaria que é apenas uma portinha e tem a melhor pizza de Veneza. Nos sentamos na beira de um poço. Fazia muito sol e tudo era bom.
À noite voltamos para a Trattoria Dei. Fiore e Araci nos recebeu com seu lindo sorriso.
Pedimos de entrada o que não havia no cardápio: flores de abobrinha  e polenta grelhada. A polenta de Veneza é branca. Meia jarra de vinho do Vêneto, umas torradas maravilhosas com azeite e uns pães recheados de azeitona. Comi uma pasta bem simples, com molho de tomate fresco e manjericão, a massa feita na casa, ou melhor, no céu.
E voltamos por uma Veneza que se apagava, a água escura, os barcos e as gôndolas dormindo.
Ainda não fui a São Marcos , nem a Accademia, nem a Rialto. Esperamos passar o final de semana quando haverá menos gente.
Hoje vamos para Fondamenta Nuove.

sábado, 17 de maio de 2014

SANTA MARIA DEL GIGLIO

Levamos 24 horas para chegar até a Praça Santa Maria del Giglio, aqui em Veneza, onde nos hospedamos. Era fim de tarde e a praça estava quase vazia. Nosso quarto dá para a praça que recebe seu nome da Igreja. Deitei no chão e fechei os olhos para ouvir os sons. Logo começaram os sinos e fiquei cheia de sinos.
Fomos jantar num restaurante lindo na praça, o Il Giglio. Pedimos vinho da casa , salada Caprese e sopa de abóbora. Havia uma mesa cheia de russos barulhentos, e alegres. Felizmente foram embora e poucos casais pontuavam a sala tão simples e linda. Acordo, abro a janela e a praça está aí, diante dos meus olhos, desde tanto tanto tempo. Juan saiu cedo para caminhar sozinho. Depois tomaremos café e vamos para a rua sem nenhum plano, nenhum mapa. Vamos andar o que meu corpo permitir, quando não aguentar mais, tomamos um vaporetto. É nosso primeiro dia.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

FERREIRA GULLAR

A passagem do poeta Ferreira Gullar por Saquarema transformará a cidade. Ontem vivemos um tsunami de poesia. Gullar falou duas horas seguidas e no final foi aplaudido de pé por um público apaixonado. A plateia estava lotada.
O poeta contou a sua vida inteira, desde menino quando com os amigos roubava copos para vender. Era assim: entravam num bar, pediam três copos d'água, roubavam um. E no final da semana tinham muitos copos que vendiam para ter um dinheirinho para o sábado e o domingo. Gullar fez toda a sua trajetória poética, suas histórias eram trágicas, engraçadas, se desdobravam na nossa frente como um filme, um livro. O Poema Sujo todos sabem foi um cataclismo na poesia brasileira. Existe um antes e depois. Quando li o Poema Sujo , em 1976, eu enlouqueci . Andava pela casa lendo o livro em voz alta, uma vez, duas, dez. O Poema Sujo me deixou ser poeta. Gullar falou sobre o acaso, o jornalismo, sobre a sua paixão pelas artes plásticas e fez um panorama imenso da política no Brasil. Poderíamos todos ficar ali mais duas horas sentados de boca aberta ouvindo, ouvindo... sem nenhum artifício, numa voz mansa, ele ia nos enfeitiçando com a sua vida, a sua poesia. Ferreira Gullar é o maior poeta vivo do Brasil hoje. Já deveria ter o Nobel .

Saquarema não será a mesma depois da passagem de Gullar e do Festival das Artes, porque agora os políticos sabem que a cidade está pronta e ávida desde muito tempo, para receber de braços abertos pensadores, poetas, grandes artistas, que possuem o maior tesouro que existe: a palavra. Falada, cantada, embalada por toda esta beleza da água que se esparrama pela cidade, mar, lagoa , montanha, matas, aqui a poesia flui, está no ar que se respira.
Nunca se viu em Saquarema tanto profissionalismo. Que venham outros eventos deste porte. Pensamento e cidadania. Todos precisam. Para nos ajudar a mudar o mundo. Se cada um mudar o seu pedacinho de mundo, se cada um envolver seu semelhante numa teia de amor, todos seremos melhores.
Agradeço ao poeta Ferreira Gullar ter me tatuado ontem com tantas palavras mágicas. Nelson Freitas e Julio Diniz, continuem voltando, não se esqueçam da gente. 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

VENEZA

Quando se pensa Veneza se pensa Praça São Marcos, multidões de turistas, gondoleiros gritando. Um cenário irreal com poucos venezianos vivendo dentro dos palácios decadentes.
Mas há outra Veneza, a de dentro. Das ruelas vazias, igrejas esquecidas, lojinhas de um outro tempo, peixeiros arrumando a sua mercadoria como joias, os peixes enfeitados com flores.Onde moram os venezianos. É para lá que vamos amanhã. Juan, meu marido viveu 40 anos na Itália e escolheu Veneza cnmo a cidade do seu coração. Visitou a cidade umas 100 vezes. Sua paixão era tamanha que Felipe González, o Primeiro Ministro da Espanha na época, lhe ofereceu o posto de Cônsul Honorário, mas sem salário e ele não pode aceitar. Esta é a quarta vez que eu o acompanho, na sua viagem , na sua relação amorosa com a cidade.
Não sairemos de Veneza , nem desembarcamos em Madrid, a nossa conexão. E na volta dormiremos no aeroporto. Juan não quer ver carros, ônibus, cidades , enfim, pois Veneza não é uma cidade. É um livro de ficção, camadas e camadas de tempo, séculos e séculos de histórias acumuladas, é um afunda-não-afunda, como um barco à deriva.Veneza oscila.
Assaltada por milhares de turistas que são despejados dos Cruzeiros e nem sabem onde estão, com barracas vendendo topo tipo de porcarias para se levar como lembrança, em plena Praça de São Marcos, Veneza abriga também o nosso tempo, o do consumismo louco e desenfreado, dos produtos chineses que tudo invadem, da algaravia de palavras que não dizem nada. É o contemporâneo que traz a sua camada de tinta para Veneza.
E vamos em busca dos bairros afastados onde se vê uma ou outra pessoa, um inglês com seu livrinho buscando um tesouro escondido...
Escrevei de lá, mas não enviarei fotos, não gosto de tirar fotos, me atrapalha, quero ver , ouvir, sentir inteiramente, usando meu corpo para absorver tudo. Mas vou contando nossas andanças.

terça-feira, 13 de maio de 2014

FESTIVAL DAS ARTES

Ontem foi a abertura do Festival das Artes em Saquarema que está sendo realizado no auditório da Faetec, na Barreira.
A escola técnica é grandiosa, tem 1.600 alunos, linda, impressionante, coisa de primeiríssimo mundo.
Estive no palco com o meu marido Juan Arias e o mediador Julio Diniz.
O debate foi caloroso e intenso. Falamos sobre liberdade, leitura, educação, enfim.
Para mim, sem literatura a escola não existe . A Secretaria de Educação estava presente, as autoridades. Mas a Faetec é longe, talvez por isso a plateia não estivesse lotada. Espero que a plateia transborde de gente nos outros encontros. Quarta-feira Saquarema recebe Ferreira Gullar. São tantos nomes imensos! Nunca houve em Saquarema nada igual. O evento, regido pelo Nelson e o Júlio Diniz é perfeito.Foi uma boa conversa.
Há a esperança de que este evento se desdobre num Festival Literário envolvendo a cidade , as escolas, a população de um modo geral.

Os ônibus em Saquarema são horrendos e maltratam a população. Já pensou se os ônibus fossem bonitos numa cidade tão pequena e bonita, com poemas estampados em seu interior? Ou já que ontem se pediu um Festival falando da identidade de Saquarema, digamos ônibus com fotografias antigas, de como era tudo aqui antes?  Quando morei em Madrid, eram assim os metrôs. Trechos de livros, poemas.A literatura deveria permear a vida das pessoas. E também a televisão deveria ser usada publicamente de outra maneira. Em todos os consultórios que vou, laboratórios, restaurantes (muitos), bares, padarias, cabeleireiros, há uma televisão ligada na TV Globo, com aqueles programas horríveis, lixo para entulhar a mente. Até quando eu fazia radioterapia tinha que ficar engolindo a Maria Braga. Por que não colocam filmes de balé, orquestras, grupos de música? Hoje é tão fácil fazer isso!Todos os lugares com TV plana e etc, desaproveitando a oportunidade de relaxar, acalmar, contribuir para o bem-estar das pessoas . Enfim, a arte tem que ser servida cotidianamente como o cafezinho que a gente toma na esquina.

domingo, 11 de maio de 2014

MÃES E FILHOS

O Dia das Mães foi criado para o comércio vender neste dia, isso todos sabem. Mas nos coloca diante de uma pauta emotiva: todos pensamos nas mães e nos filhos e quem não tem filho pensa num sobrinho, num afilhado, num aluno especial. E quem não tem mãe fica com uma dor difusa pelo corpo e a criança que não tem mãe fica com uma tragédia. Ainda bem que existem tias e madrinhas e boadrastas.
Hoje vou passar o dia com as minhas gatas que são minhas filhas. Os meninos moram longe e minha mãe foi embora com 89 anos e sua fome de vida. Viveu pouco porque sempre para nós filhos, é pouco.
Meus filhos para mim são meninos pequenos, um tem 40 e o outro 45. Temos uma ligação feita de fios dourados. Eles são ,às vezes , meus timoneiros. Só sei que sem eles estaria sempre perdida.
E depois , para além da memória que carregamos, chegam os netos. É um desdobramento, uma página que viramos para o melhor da história, quando a mocinha é salva. Meu neto me chama para passear e se demoro a responder ele chama a minha atenção, como se fosse eu a menina e ele meu pai: - "Vovó, você é surda? Vamos!"
Então caminhamos pela floresta, os dois de mãos dadas. Enquanto isso brincamos de trocar as letras das músicas. Ao invés de doces a Chapeuzinho Vermelho leva ovos, porque eu prefiro omelete.
Minha mãe foi uma grande mulher, uma artista guerreira e com a mente totalmente aberta. Meus filhos são pessoas educadas, delicadas, sensíveis gentis e honestas. Eles são bons.
A grossa corda da vida. A que tecemos dia por dia, faça chuva ou sol. Ao coar o primeiro café, ao apagar a última luz.
Que o coração de todos os pais, mães, filhos, tios, tias, tenham hoje o coração , o corpo inteiro, iluminado de amor. 
 


sábado, 10 de maio de 2014

CAFÉ, PÃO E TEXTO

Cheguei de Teresópólis dia 8 no final da tarde. Vanda, minha caseira e parceira, já havia deixado a feijoada em pleno andamento. Logo chegaram minhas amigas, Carolina, editora da Rovelle e Monica. Carolina trouxe 40 livros para distribuir entre as crianças que no dia seguinte participariam do Pojeto Café, Pão e Texto.
Quando o ônibus (que se chamava Divino) encostou na calçada, na porta da minha casa, todos gritando de felicidade, eu estava a postos, de braços abertos para recebê-los. Eles falavam, " olha a casa amarela" e quando viram o Juan, também na porta, gritavam "ele estava no livro!" É que leram o e-book A Bruxinha da Casa Amarela e estavam entrando dentro do livro. Perguntavam, "esse é o jardim que a bruxa cuida?"
Fomos todos para o jardim e fizeram a roda mais linda e colorida , sentados na grama. A ONG Care do Brasil, que trabalha com leitura em Duque de Caxias, trouxe agentes de leitura e deu o ônibus. Li para eles alguns poemas do meu novo original que sairá pela ed. Rovelle no ano que vem. Eles apresentaram poemas declamados lindamente, uma bela agente de leitura leu o livro Nana, mostrando suas ilustrações e Juan trouxe a Nana para ser apresentada. Ela entrou em pânico e fugiu para debaixo da cama do quarto .Os jabutis decididamente amam as Rodas de Leitura no jardim, pois não saiam de dentro da roda e as meninas gritavam e gritavam.
Carolina , da ed. Rovelle deu uma aula sobre edição de livros, foi maravilhoso. E distribuiu os belíssimos 40 livros que trouxe. Falamos sobre como a leitura abre para eles o mundo e a possibilidade de encontrarem seus caminhos.
Depois passamos para o almoço. Todas as crianças sentadas. As professoras serviam a comida diretamente do fogão de lenha. E nós e as professoras e o motorista e a Vanda e Juan e Chico que veio assistir, e o marido de uma professora sentamos em cadeiras com o prato no colo, pois não havia lugar nas mesas para todos , éramos mais de 50 pessoas!!!
Depois da sobremesa tivemos o terceiro momento: As crianças foram até a beira do mar. Alguns não conheciam o mar. Como no conto do Galeano, uma das crianças disse: " é muito grande!"
Monica, minha amiga fotógrafa fotografava tudo o que podia. A alegria deles era tamanha que até o a luz brilhava mais.
Voltaram sujos de areia, transbordando de felicidade. Depois de lavar os pés, hora dos autógrafos em livros alheios, tive que autografar, e hora de mais fotos e da despedida . Tocou o telefone quando entrei em casa
depois da partida do ônibus. Era meu filho Guga. Eu não podia falar de tanta emoção, a voz quase não saía.

FALA AUTOR

No dia 6 de maio joguei âncoras no apartamentozinho da minha Tia Alice em Teresópolis. Ela tem ou 84 anos, ou 86. Meu avô tinha mania de falsificar datas. Disse a ela que ela devia escolher a data em que fará 85 anos, assim ela ganha dois anos de uma vez só e definitivamente. Conversamos muito, na verdade, ela tem 20 anos. Fomos jantar num restaurante lindo , tomamos vinho, falamos sobre os filhos, a vida.
No dia seguinte fui para a Comunidade do Morro do Tiro. As crianças eram um luxo, MARAVILHOSAS. Nos apertamos na sala de arte e com a ajuda da Amanda do Sesc passei dois poemas animados que eles amaram. As crianças são todos adjetivos bons que você encontrar: lindas, animadas, participativas, alegres, afetuosas. As professoras são carinhosíssimas.As crianças fazem música, percussão, artesanato, saem para passear, vão ao Sesc participar dos programas, vão até a restaurantes. A Diretora Valéria trata a escola como um tesouro. Ela é vibrante como as cores da escola! Os alunos criaram dois personagens, Comilão e Comilona para ajudar na limpeza da escola. Os pais participam, pintaram as salas, um pai pedreiro está construindo uma despensa.
Perguntei: Por que Morro do Tiro? Tem muito tiro por aqui? Não, me responderam, não tem tiro nenhum, não há violência . É que antigamente ali era lugar de treinamento de tiro de guerra. E então a diretora me conta que estão estudando a Alemanha e vão estudar o holocausto e vão discutir o racismo.
Perguntei a minha tia se ela se lembra do Morro do Tiro. E ela me diz que sim, na época da guerra era lugar de treinamento. E que minha mãe namorou um oficial, antes do meu pai e teve mesmo uma "paixonite" pir ele! Eu não conhecia esta história.
Como o Projeto Fala Autor , além de levar o autor, uma contação de histórias em cima de um livro, dá um livro de presente para cada criança envolvida no projeto, eu perguntei se eles queriam um autógrafo com beijo ou sem beijo e me responderam que queriam com beijo. Logo, dei 150 autógrafos e 150 beijos. Confesso que nunca beijei tanto!

terça-feira, 6 de maio de 2014

TIA ALICE

Quando escrevi as Três Velhinhas , Tão Velhinhas, ed. Paulus, para dar um traço de personalidade a cada uma delas, na verdade me inspirei em quatro velhinhas lindas e maravilhosas:
Minha mãe, Dona Bertha, minha tia Cecília, minha tia Alice, minha sogra do primeiro casamento, Maria Clara.
Bertha, minha mãe amava jardins, passava o dia inteiro cavando, plantando, podando, quando estava aqui , em sua casa de Saquarema, que não existe mais. Maria Clara era musicista, passava o dia cantarolando, tia Alice era sonhadora e tia Cecília super prática.
A históiria da cobiça e do casarão foi totalmente inventada.
Minha mãe, minha tia Cecília e Maria Clara, já se mudaram para o céu. Tia Alice ficou aqui na Terra com seus afazeres. Com mais de oitenta anos vive sozinha, é linda, viaja sozinha, é leitora, lê o mundo, sabe de tudo, ama cozinhar. E mora em Teresópolis para onde vou hoje trabalhar no Sesc. Hoje à noite vamos jantar juntas num restaurante bem bonito perto da sua casa e conversaremos sobre a vida. Dormirei em seu pequenino apartamento.Ela é calma e cuidou da minha mãe. Ela cuidou de mim quando eu era criança, me levava ao parque de diversões e faz parte das minhas primeiras memórias. Ela ama gatos e cachorros.Ela ama a vida.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

MADRUGADINHA

Acordei bem de madrugadinha, às 4:15h , noite ainda, botei feijão no fogo e me sentei na varanda para tomar café.É uma hora tão maravilhosa para pensar. Quando apareciam as primeiras cores no céu , Juan veio para a mesa. O barulho do mar é hipnótico, parece que nos embrulha e a gente vai rolando pra dentro da gente...
Recebi um tema lindo para falar no dia 12 no Festival de Artes aqui em Saquarema, no auditório da Faetec: Memória e Identidade. Somos feitos de memória e seremos memória. Acho que me sentirei em casa. Juan vai falar também e me disse, "que pena que não posso falar em espanhol!" Ele me diz, "me sinto engessado em português."
A nossa lingua, de certa maneira, é a nossa mãe.

sábado, 3 de maio de 2014

EDUCAÇÃO

No Brasil só se faz polítiquinhas. Uma verdadeira revolução teria que passar pelas escolas. O mundo é tão complexo hoje, tão tão veloz, as escolas não podem continuar ancoradas em algum tempo perdido. Todos os alunos do Brasil deveriam sair da escola falando fluentemente espanhol, já que somos uma ilha de português cercada de espanhol por todos os lados. A lei existe e foi aprovada, mas de que servem leis no Brasil? São folhas mortas. E pensar quão rápido as crianças aprendem uma lingua e como a aquisição de uma nova lingua amplia as mentes e os horizontes.E facilita a aquisição de outras.
Todas as escolas deveriam ser de horário integral e profissionalizantes.
Todas as escolas deveriam ter um fórum de pensamento para se discutir o mundo.
Todas as matérias teriam que ter um link com a vida de todo dia.
Todas as escolas deveriam ter LITERATURA como a chave mestra, pois se pode dar aula de várias matérias partindo de um bom texto literário.
Todas as escolas deveriam ter um coral ou um grupo de dança ou um grupo de teatro ou um grupo de contação de histórias ou uma banda da escola, etc, etc.
Todas as escolas deveriam incentivar os esportes criando potenciais atletas.
Todas as escolas deveriam conversar sobre sexo, drogas e rock .
As escolas de uma mesma cidade deveriam interagir.
Todas as escolas deveriam dar voz para as crianças e adolescentes. Eles precisam se expressar. Precisam ser escutados.
Um professor tem que ganhar um salário com que possa sustentar a sua vida, a sua família, com dignidade, isso é o mínimo. E toda escola deveria ter um Clube de Leitura para os professores.
E vocês, meus leitores continuem , aumentem a lista, por favor!

sexta-feira, 2 de maio de 2014

LÁ DE PIRINÓPOLIS

Guga me telefona lá de Pirinópilis e me conta: sua oficina para professores (para professores não músicos que queiram dar aula de música) e Luis amou o show do Tino Freitas. Maurício Leite veio falar comigo ao telefone e tirou uma foto com a minha voz.Ele me conta que Pirinópolis é linda de morrer , que a Pousada é maravilhosa, Patrícia chora o tempo todo de emoção e que a Iris que me manda beijos, nós duas nos amamos.
Ontem terminei um texto bem pequenininho e bonitinho para crianças e para a Elvira Vigna ilustrar. Retomamos mesmo a nossa parceria.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

PEQUENO PRÍNCIPE

Ontem vi uma linda entrevista do meu poeta de cabeceira Ferreira Gullar sobre a sua nova tradução do O Pequeno Príncipe.
Penso que na escola este livro deveria abrir o ano letivo com muitas turmas. Saint-Éxupery sabia que estava escrevendo para públicos de idades variadas. E o livro é capaz de criar laços afetivos fortíssimos entre as pessoas. Quem sabe a história de alguém e se envolve com esta pessoa não é capaz de maltratar (claro que há exceções até com desfechos trágicos). Mas a chance de bulling é menor.
O Pequeno Príncipe é  tão simples e tão bonito, toca de verdade em nossas fibras mais profundas. Todos os temas inerentes ao humano estão aí: solidão, morte, vida, troca, amor, responsabilidade, cuidado, compaixão, imaginação. Como o livro é premonitório, o autor sofreu mesmo uma pane e seu avião desapareceu e muitos anos se passaram até sua pulseira ser encontrada por um pescador e alguns destroços do avião. Saint-Éxupery sofreu a II Guerra e passa tanto esperança e amor em seu livro.
Minha primeira leitura do livro foi na Aliança Francesa, no segundo ano e eu tinha 15 anos e fiquei muito impactada , profundamente tocada.
Que os professores leiam junto com seus alunos. Penso nos adolescentes, os mais violentos, os mais arredios.