segunda-feira, 6 de agosto de 2018

ZEN

Não há receita melhor do que a receita zen de viver dia por dia e saber que todos os dias ganhamos e perdemos e que o imprevisível é a rota, pois tantas vezes estamos tão confortáveis e entra um sudoeste pelas janelas da casa e vira a vida do avesso.
Quantas vezes senti o abismo logo ali, a um milímetro dos meus pés.
Mas depois voltamos para a superfície.
Algumas perdas são muito duras e nunca cicatrizam, é impossível, então aprendemos a caminhar com essa dor, como os marinheiros, meio de lado.
No entanto, a vida é tudo isso que nos carrega e cada um faz o que pode, pinta, escreve, cozinha, canta, dança, pesquisa, descobre, cava, planta. E o amor amarra todas as pontas.

sábado, 4 de agosto de 2018

MALAS DE LEITURA

Hoje cedo li um dos relatos mais emocionantes, a história do Maurício Leite e sua Mala de Leitura e Aventuras. Seu trajeto por lugares remotos faz a gente chorar, rir, perder o fôlego.
Vou colocar aqui uma amostra pequenininha do seu relato, que acho que deveria se transformar em livro o quanto antes possível.
Maurício Leite trabalha quietinho, sem fazer alarde e já faz durante anos um dos mais belos trabalhos de leitura desse país, levando nossos livros para crianças da África e Portugal. Além de lugares incríveis do Brasil de dentro.
Leia o texto completo na Revista Cátedra da PUC:
"Moçambique

Como o tempo passa rápido nas histórias, aqui estou embarcando para Moçambique, levando na bagagem dois mil e quatrocentos livros infantis para 40 Malas de Leitura. Como um rio que tem que cumprir seu curso e desaguar no mar, o rio da minha vida desaguou no Oceano Índico, bem de frente para a ilha de Madagascar.
Levava nas mãos o livro Terra Sonâmbula de Mia Couto. Em cada página lida ia conhecendo um pouco das histórias e dos mistérios do continente africano, a beleza da cultura e da gente moçambicana. Tristes relatos da guerra, lindas mágicas e personagens e cenários que logo eu iria conhecer. Algumas palavras diferentes para mim: machimbombo, berma, maningue, canimambo. Ficou-me na memória a frase: “que a guerra é uma serpente que usa os nossos próprios dentes para nos morder”. Vivendo por lá vamos sendo lentamente apresentados à África e seus mistérios, ou não! (canimambo – obrigado changana Moçamibique, machimbombo é ônibus, maningue é muito, berma, beira, berma da estrada.)
Visitei, trabalhei e vivi em alguns desses países em seu pós-guerra: guerras coloniais, as lutas pela independência e novas guerras para saber de quem seria o poder. Povos lutando e defendendo e ferindo a terra, matando sua gente, expulsando pessoas, separando famílias, esparramando minas terrestres e recrutando crianças para a luta. Nem os animais quiseram ficar por lá.
Vivi dois anos em Moçambique. Uma experiência rica e cheia de aventuras. Afinal, estamos em África! Trabalhei por aldeias e lugarejos distantes. Andei em parques naturais de elefantes, regiões com minas terrestres, praias desertas, savanas, florestas de imbondeiros (baobá). Sobrevoei o Saara e levei muitos, muitos baculejos da polícia local em busca de propinas. Como dizem por lá: “é para a gasosa, patrão!” (gasosa – refrigerante).
Nem lembro mais quantas vezes fui parado, detido e até seqüestrado pela polícia e duas vezes preso. No mercado do Roque Santeiro (era o maior mercado a céu aberto em Luanda, o nome vem da telenovela brasileira que era apresentada lá na época em surgiu o Roque, como era conhecido), o policial achou que eu estava a vender mercadorias ilegais. “O que levas aí nessa Mala?” Eu disse que levava livros. “E o que é isso de livros?” E lá fui eu para a esquadra policial. Ligo para a embaixada do Brasil e alguém vem me soltar. Isso no caso da prisão. No caso de seqüestros e assaltos tive que me virar sozinho, sendo muito criativo e não demonstrando medo. Jamais!
Trabalhei nos oito distritos de Maputo, uns bem longe da capital como o distrito de Namaacha que faz divisa com a Suazilândia e a África do Sul. Na primeira etapa, implantamos 80 Malas de Leitura nos distritos da Província de Maputo. Trabalhei para cooperações portuguesa, canadiana, francesa, holandesa, finlandesa e muitas africanas, como a Direção Provincial de Educação de Maputo. Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura da Educação, todos ligados aos governos locais.
Cabo Verde

Saída de Brasília para São Paulo, de lá para Lisboa (caí de amores pela cidade). De Lisboa voei para a Ilha de Sal e depois para a Ilha de Santiago em Praia, a capital, onde fica a Embaixada do Brasil. Voltar para a Ilha de Sal, embarcar para Ilha de São Vicente ( a terra onde Deus esparramou a sua alegria) e uma travessia de barco para a Ilha de Santo Antão, onde me esperariam para chegar do outro lado da ilha, na Ribeira Grande.
O barco chegou e partiu e eu fiquei sozinho na praia a espera de que me viessem buscar. Não vieram. Duas longas horas de espera. Praia de negras pedras vulcânicas. Enterrei minha bagagem nas pedras, minha mala, a Mala de Leitura, e mais uma sacola com livros. Enterrados os tesouros, marcando no céu, na terra e no ar a localização e de costas para o mar pensei: para que lado seguir? Direita ou esquerda? Atrás o mar e à frente uma enorme montanha. Senti o vento, segui pela direita e acertei, pois estava a sair de um posto da capitania dos portos o senhor que era o seu diretor.
Por poucos minutos eu já não o encontraria lá no posto. Contei para ele que eu deveria ir lá para o outro lado, para a Ribeira Grande. Ele me levou de carro até onde minha bagagem estava enterrada e seguimos para a casa de um vereador amigo dele que ligou para o Senhor da Ribeira Grande, dizendo que estava ali o professor brasileiro das Malas de Leitura. Ouviu a seguinte resposta: “Ê pá, mas então não era amanhã que chegava o gajo professor? Julgava que fosse amanhã. Veja lá amigo, mande lá o professor para cá, se faz favor.”
Tudo resolvido? Claro que não! Era um sábado e a Câmara Municipal estava fechada. O senhor vereador ligou para outro senhor, responsável pelos transportes, e pediu uma viatura para levar o professor para o outro lado. Conseguimos o carro. Agora temos que conseguir um motorista. Liga para um e outro e finalmente conseguimos um que me levasse para o outro lado da ilha. Carro e motorista. Tudo certo? Não! Agora temos que ligar para o outro senhor que conseguirá uma requisição para o gasóleo. Já temos combustível. Vamos? Ainda não. O motorista: “não quero voltar sozinho, vamos à casa do meu primo buscá-lo para me fazer companhia”. O primo não estava em casa. Estava a pescar na praia. Manda o filho ir buscar o pai e finalmente embarcamos rumo à Ribeira Grande.
Lá muito em cima, nas montanhas há uma passagem chamada “Delgadinho”. Estreita e emocionante como nos filmes de aventura. E do alto, muito, muito alto, ver e sentir, não sem um pouco de medo, desabar sobre nós as maiores nuvens em formas de altas ondas como nos engolindo. Lá, bem nas alturas, sendo tocado por nuvens, pensei: valeu à pena toda a longa viagem feita até aqui.
Na implantação das Malas de Leitura com os professores, o clima foi de festa e alegria, como é tudo por lá, com aquela gente tão de bem com a vida. Acompanhei as Malas subindo, carregadas por mulas, até as escolas localizadas em regiões nas encostas das montanhas da maravilhosa Ilha de Santo Antão. Nessas escolas, nas alturas, os professores e os alunos receberam os mais encantadores livros. Lá embaixo, bem longe, até onde o olhar alcança, a imensidão do oceano atlântico cercando de beleza aquela ilha maravilhosa do arquipélago de Cabo Verde."
Relato de Maurício Leite
Leia o texto completo na Revista
REVISTA.CATEDRA.PUC-RIO.BR
Mauricio Leite Brasil   (Karingana wa Karingana – Língua Changana – Era uma vez, ou uma maneira de pedir permissão para contar/Moçambique.) Era em Nova York, voltar a viver em Nova York, que eu pensava quando entrei no Palácio do Itamaraty naquela tarde no início do ano 2000. Fui para uma ...

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

EM BRANCO E PRETO

Meu pai teve durante muitos anos uma depressão severa e algumas vezes me disse o quanto sofria.
Talvez a vida para ele fosse em branco e preto com pinceladas de cinza.
Como separar a tristeza da depressão é tema para entendidos.
Mas sei que com tristeza se pode fabricar muita coisa, mas com uma depressão séria a existência fica difícil.
Vivemos no melhor ou no pior dos mundos? Já foi muito pior, certamente, mas hoje a felicidade e a juventude são artefatos obrigatórios e isso pode gerar muita infelicidade.
Fiquei maravilhada quando as professoras do meu último encontro do Café, Pão e Texto, me contaram que na sua UMEI Áurea Pimentel de Menezes, em Niterói, as criancinhas bem pequenas tinham aulas de sentimentos. Criança também fica triste. Também tem sensação de abandono, medo, insegurança.
Ter aula de sentimentos é maravilhoso. É maravilhoso saber que os sentimentos possuem todas as cores e não são em branco e preto. E poder lidar com isso. E pedir ajuda e se deixar ajudar quando for necessário.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

TESOURO

Quando voltava da escola, de bonde, do Colégio Hebreu Brasileiro, na Tijuca, no Rio de Janeiro, na década de 60, gostava de imaginar a vida das pessoas que viajavam comigo.
Hoje, com as Redes Sociais, tantas vidas estão ao nosso alcance, num gênero intermediário entre ficção e realidade, não é um romance que estou lendo, mas o que será? Nem preciso imaginar, já vou entrando em casas, restaurantes, hospitais, cozinhas, quintais, participo de festas, lutos, aniversários, desabafos, de gente que só conheço numa dimensão virtual.
Essa linguagem fragmentada, onde se fala de tudo e de nada, onde tanto nos é mostrado ao mesmo tempo, já faz parte do nosso cotidiano.
Apanhamos aqui e ali, poemas e agressões, na mais alucinante colcha de retalhos.
E o que não queremos mostrar, não queremos dizer, será então o nosso verdadeiro tesouro?