sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

MEMÓRIAS

Recebo por correio um livro da minha irnmã Evelyn que mora em Visconde de Mauá. Ela comprou num sebo e chorou muito. Ela me diz: se prepare para ter um encontro com o nosso pai.
O livro se chama Eu, Filha de Sobreviventes do Holocausto de Bernice Eisenstein.
Eu respondo: nossos pais vieram antes da guerra. Nós não somos filhas de sobreviventes do Holocausto.
Ele me diz : leia, mas se prepare.
Comecei a ler.  O pai da autora É o nosso pai. A sua casa da infância É a nossa casa.
Meus pais vieram antes da guerra, mas toda a minha infância convivi com sombras.
Muito pequena mesmo, com seis anos, eu já sabia o que era um Kapo, um neurótico de guerra. Na minha casa se falava ídiche quando era pra gente não entender. Eu nunca quis aprender. Mas sei algumas palavras pejorativas, palavrões, nomes de comida. Minha babá negra, a Eunice, xingava em ídiche.
Como o pai da autora , meu pai era um jogador. Meu avô materno também. E nosso vizinho, Waldemar, neurótico de guerra, tinha em casa como um Salão de Jogos. As pessoas (só judeus) iam lá para jogar.
Meu pai, como o pai da autora, tinha acessos de raiva, mas era engraçadíssimo, ria, contava piadas, comia muito. Ele dizia: Passei fome na Polônia. A fome que a gente passa nunca passa.
Meu pai era lindíssimo. Um homem alto, de olhos azuis, sempre bem arrumado. Como o pai da autora. E como ela eu sempre disse para mim mesma: Ah, porque não herdei os belos olhos do meu pai? Meu pai era um homem muito sensual. 
Algumas posturas do pai da autora são do meu pai. Domingo de manhã, deitado na cama, ouvindo música clássica. Já no segundo acorde ele dizia o autor e eu com uns oito anos nem podia acreditar.
Como a família da autora toda a minha família na minha infância morava perto, mas perto mesmo, quase ao lado. Bem novinha eu ia só de uma casa para outra para comer as delícias. Biscoitos de nata na casa da minha vovó Faiga e pudim de duas cores na casa da tia Cecília.
Meu pai nunca queria falar do passado. Não sei nada do seu passado na Polônia, nem quem são os seu antepassados. Ouvi falar, de leve...Não sei quem ficou na Polônia .
Meu pai saiu da Polônia com 14 anos . Ele não falava polonês. Só ídiche. Mas cantava uma música meio indecente que eu adorava: da Tatiana. É que a Tatiana estava doente e foi ao médico , mas a sua doença era um bebê na barriga! E pedia: pai, canta a musica da Tatiana!!!
O irmão do meu pai morava em Niterói.Tio Waldemar. E sua mulher era tão doce, minha tia Dora. Eles conversavam muito em ídiche.  Passei minha infância indo de barca ver meus tios. Os irmão se amavam e era bom, eu sentia a felicidade do meu pai. Contavam piadas, riam.
O pai do meu pai foi assassinado na sua frente. A Polônia, mesmo antes da guerra não gostava nada dos judeus.
Meu pai me deu uma caixa invisível cheia de tesouros: a honestidade como valor absoluto, a compaixão, saber que a minha humanidade é um exercício diário. O amor pela arte. Meu pai era um homem bom. Incorruptível. Nunca desejou bens materiais. Nunca se curvou diante de ninguém. Queria amor. O amor dos filhos.
Faz tanto tempo que ele se foi. Mas ontem nos encontramos . Lejbus Kligerman, meu pai, a morte não existe.
 

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