Fazia tempo que não chovia tanto em Saquarema nem tinhamos um sudoeste tão imenso revirando as árvores e a casa.
O grande poeta escritor Álvaro Mutis, colombiano, me oferece a sua maravilhosa, caudalosa poesia. Tento traduzir, faço o possível:
VISITA DA CHUVA
Chega de repente a chuva, instala suas hostes, minuciosos
guerreiros de seda e sonho.
Salta alegre pelos telhados, desce pelos canais em precipitada algaravía;
começa a grande festa das águas numa viagem que estabelece
seu transitório domínio
E pela mão nos leva a regiões que o tempo havia
sepultado, parece, para sempre.
alí nos esperam
a febre da infância,
a lenta convalescença nas tardes de um outono incessante,
os amores que se prometiam sem término,
os lutos na família,
os úmidos funerais no campo,
o trem detido diante do viaduto que a cheia arrastou,
os insetos zumbindo no vagão onde nos surpreendeu
a aurora,
as histórias de piratas cobiçosos, de malaios que degolan
em silêncio, de viagens ao Polo, de tormentas devastadoras e ilhas afortunadas;
nossos pais, jovens, muito mais jovens do que estamos agora,
que a chuva resgata de sua parda cinza sem idade, do seu calado
trabalho mineral
e irrompem vestidos de riso e gestos juvenis.
Que bendição a chuva, que intacta maravilha o seu passo
cheio de surpresa e bondade
que nos preserva do esquecimento e da rotina sem memória.
Com que gozo transparente nos instalamos em seu império
de pálios vegetais
e com quanta construída resignação a escutamos calar pausadamente, afastar-se e regressar por um instante
até que nos abandona no meio de um silêencio lavado,
de um âmbito recém inaugurado
que invade o presente com suas turvas matérias
derrotadas, seu cortejo de pálidas convicções, de costumes
onde não cabe a esperança.
Recordemos sempre esta visitada chuva. Fechados os
olhos, tratemos de evocar seu vozerío
e assistamos de novo a vitória de suas hostes que,
por um instante, derrotam a morte.
Álvaro Mutis, Poesía Reunida, ed. Contemporánea
terça-feira, 1 de maio de 2012
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